( Reflections- Wynton Marsalis: Sugestão para ouvir enquanto ler.)
Era mais uma noite quente em Salvador. O relógio finalmente
zerado, dava início a um novo dia. Quando olhava o relógio zerar, para mim,
significava mais uma chance de reviver lembranças esquecidas. Aquele horário
havia se tornado mágico para minhas memórias.
Era mais uma noite quente de outono, quando envolvida pelo
frio do ar condicionado, eu lembrei daquela noite do carnaval de 2015, na
Chapada Diamantina. Estava tão nervosa com aquele encontro, que nem consigo me
recordar da roupa que vestia, mas ainda é vivo na mente o primeiro vislumbre
que tive dele. Naquela casa de pedra, onde a luz deixava as cores mais quentes
fazendo contraste com o clima ameno, ele estava parado ao lado da mesa de
madeira conversando com outras pessoas que na minha recordação são apenas
vultos. Ele vestia um casaco marrom, lembrando um lenhador daqueles típicos
americanos, o boné que sombreava o rosto o dava um ar de mistério em suas
linhas duras de um passado doloroso. Havia um sorriso no meio daquela barba
rala e grisalha, e um olhar que me arrebatou, quando este pousou os olhos em
mim ao entrar na sala. Eu nunca consegui entender o que nossos olhares
disseram, mas disseram. Nunca pude decifrar a energia que nos atraiu, mas fomos
atraídos. Nunca poderei explicar o que aconteceu naquele primeiro contato antes
das apresentações, mas algo aconteceu.
Confesso que foi decepcionante o seguir da noite, pois não
houveram demonstrações de interesse. Apesar de estar sentado à minha frente no
restaurante, ele continuava distante. Inacessível. Não é preciso ser muito
conhecedor da minha pessoa para saber que toda aquela reclusão me atiçava muito
mais, e minha curiosidade de descobrir aquele homem era muito mais que a minha
fome no momento. Outras pessoas falavam, interagiam, mas elas eram vultos, e
meus ouvidos eram atentos a qualquer pronunciar da voz rasgada dele. E eu
esperava. Esperava ser surpreendida por aquele timbre que me causava pequenos
arrepios. O quão adolescente voltei a ser, por soltar suspiros escondidos
quando imaginava como deveria ser o toque de suas mãos ásperas em minha pele
fresca e macia. Ou de como seria o roçar da barba no meu pescoço, enquanto ele
sentia o cheiro dos meus formosos vinte e um anos. O quão adolescentes fomos ao
desvias os olhares que queriam ser encarados e encorajados.
Mas ainda assim, a esperança em mim foi-se. Havia algo que
eu não entendia entre as outras duas mulheres que o cercavam, mas que de alguma
forma me disse que ele não seria meu. Fomos então andando até a casa onde eu
estava hospedada, lá havia muita música que saia da vitrola, muitas pessoas no
jardim, fumando e rindo na noite fria de Igatu. Eu estava pronta para me
despedir daquele homem que exalava uma presença forte e viril sobre mim, quando
ele me olhou, provocando novamente uma ligação inexplicável em nossos olhares,
e me chamou para fumar com ele na casa em que estava. Tão envolvida fiquei
naquela figura e em meus pensamentos juvenis, que aceitei sem nem cogitar um
segundo pensamento. E fui. Chegando lá, novamente só havia vultos e murmúrios.
Meu foco estava totalmente nele, que estava escondido em fumaça, a luz branca
da porta da cozinha, e as sombras que a união dos dois elementos anteriores
causavam. Da conversa eu não lembro muito, mas relembro de estarmos sentados
com mais duas pessoas em um banco de madeira no jardim, eu alternava entre o
fumo e a doce Amarula. Chapados, ouvimos a sinfonia de três grilos. Os vultos faziam outras coisas, mas ele
estava parado, imerso em seus tão profundos pensamentos que eu nunca imaginei
um dia ser capaz de mergulhar tão a fundo neles. Nessa altura eu estava tão
inebriada das drogas lícitas e ilícitas que já não me lembrava mais onde
estava, que horas eram, ou que eu precisava voltar pra casa. Apenas ele em
minha visão embaçada de fumaça, o leve calor produzido das nossas pernas que se
encostavam, e o meu coração que batia tão forte que quase pensei que todos o
escutavam. Mas um clique me despertou para a realidade, como o badalar dos
sinos avisou a Cinderela do fim do seu feitiço, e eu disse que precisava ir.
Ele me levaria em casa, ofereceu. Não recusei.
Pelo caminho de paralelepípedos incertos, o frio cada vez
mais se fazia presente. As pernas sutilmente se trocavam, e todo esforço era
necessário para não tropeçar. Enfim, caminhando sozinhos, na pequena cidade de
Igatu, nossos risos brotavam. Pequenas conversas surgiam. O corpo esquentava.
Naquela rua de iluminação um pouco fraca e de casas antigas e coloridas,
paramos na porta verde musgo da minha casa. Os sorrisos cada vez mais abertos,
davam espaço para que os corpos se aproximassem mais. Não houveram muitas
palavras, apenas o inevitável. O quão adolescentes fomos para enfim nos
beijarmos apenas no fim do encontro, um beijo que criou um encaixe perfeito dos
lábios, criando mil delírios em minha mente e em meu corpo ao sentir o toque
firme das mãos dele.
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