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domingo, 31 de agosto de 2014

Take a sad song and make it better

Foi um dia difícil. Ele havia trabalhado por doze exaustivas horas, e quando chegou em casa, tudo estava uma zona. Tudo estava uma zona. Sua saúde não ia bem, ele não via os amigos, as contas o sufocavam e ele possuía orgulho demais para voltar pra casa dos pais. E há muito tempo ele abandonou seus sonhos, decidiu apenas focar em coisas que o permitisse sobreviver, como faculdades e empregos. Do amor ele também desistiu, pois isso demanda tempo e dinheiro, e essas duas coisas ele não tem de sobra. Tudo estava uma zona.
Foi retirando cada peça de roupa e jogando em qualquer lugar pela casa, ao chegar no quarto, já não possuía nada. Não possuía esperança, vontade ou fome, jogou-se na cama e olhou o plano de fundo do desktop do notebook. Seria aquele brilho de vida artificial que o mantinha vivo? Ele o segurou delicadamente e o trouxe para perto, limpou a tela suja grosseiramente com os dedos e vasculhou futilmente a internet. Ele viu os gênios do mundo que desistiram de suas faculdades, por que ele também não era? Por que todos não poderiam ser gênios? Por que guerras? Por que dinheiro? Por que tudo isso destruía com os desejos e planos ejaculando uma camada de concreto de um mundo banal e desumano? Fazer-nos engolir a pulso esse estupro de sonhos, onde você tem que ser rotulado a qualquer custo, onde se é forçado a seguir uma politica. Para ele esse mundo era sujo demais, seja lá quem ou o que que criou esse mundo, apenas desperdiçou seu tempo, pois ali só viviam humanos que viam diferença em alguém ser negro, ou mulher, ou gay, ou pagão, ou anão, ou tudo isso junto. Pessoas que são petulantes e egoístas a ponto de acharem que em um universo ainda não totalmente explorado, só nós seriamos os únicos seres vivos e pensantes a viver nele. Disso tudo ele estava farto.
Foi até o banheiro, sentou-se no único trono que haveria para ele na vida e cagou. Cagou pra tudo, para as pessoas e as regras que elas faziam. Deu a descarga já decidido que daquele dia ele não passaria. Colocou o notebook sobre o vaso e deixou tocando suas músicas favoritas, ligou o chuveiro e agradeceu por pelo menos ter água quente para banhar-se. Sentou-se naquele chão frio de um box que quase não cabia ele, deixou que a água caísse violentamente nele machucando sua pele, mas ao mesmo tempo, o limpando de toda aquela imundice. Ele tinha tudo agora, tinha a navalha e a carne, tinha a chance de livrar-se daquele corpo imenso cheio de rancor e frustrações.
Tudo estava uma zona, e tudo ficaria assim. Mas uma velha música tocou, e mudou tudo no último segundo, foi possível até ver um fio fino de sangue escorrer.

"So let it out and let it in
Hey, Jude, begin
You're waiting for someone to perform with
And don't you know that is just you?
Hey, Jude, you'll do!
The movement you need is on your shoulder"

Aquilo incrivelmente reergueu ele. Quem se importa como o mundo está estragado? Ainda existia partes que algo puro ainda possuía vida, que possuía o verdadeiro desejo de viver, e era pra essas coisas que ele precisaria se manter vivo, pois era nesses lugares que ele deveria morar. Largaria tudo, suas lembranças e seu nome, ele seria do mundo e o mundo seria dele, voltaria a perseguir seu sonho, e mesmo que isso o fizesse passar fome algumas noites, ele faria aquilo e estaria feliz com aquilo. Ele viveria uma canção, amaria sem limites, beberia e riria com as mais diversas pessoas e culturas. Estava decidido, tudo estava uma zona, e tudo ficaria assim, ele aprenderia viver naquela desordem e ainda assim, seria feliz. Levantou-se daquele chão que ele já não achava frio e sorriu para seu reflexo na porta de vidro do box.

Tudo daria certo. Daria, se naquele momento seu chuveiro não explodisse por conta da sobrecarga da energia por estar muito quente, e a fiação ter encostado nele por ser alto demais. Seu corpo desengonçado caiu no chão, ele lembrou que alguém uma vez disse sobre uma lei do retorno, onde tudo que desejasse voltaria três vezes a mais para você. Se ele também tivesse insistido naquela pessoa, hoje eles morariam juntos, e ela teria salvo a sua vida. Mas não, ele jazia ali, frio e ainda sujo, com ideias que demorou demais para ter, ideias que todos que viviam com ele deveriam ter. A polícia só encontraria seu corpo uma semana depois.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Qualificação de lembranças

Ela sentou mais uma vez naquele cubículo aonde trabalhava. Dividia a sala com mais seis pessoas que falavam ao mesmo tempo ao telefone. Ela estava cansada de sempre ligar e lidar com pessoas mal humoradas, que consequentemente a deixam em péssimo humor. Por sorte, hoje começaria a trabalhar com uma nova empresa, e então deveria ligar para alguns teatros, e isso a deixou um pouco empolgada.
Conhecer mais os bastidores dos teatros dos quais ela sonhava conhecer, estava tornando todo aquele trabalho muito mais divertido, o próximo que ela entraria em contato, se tratava de uma construção majestosa, com música e arte explodindo por suas paredes antigas.

- Bom dia, eu gostaria de falar sobre a aparelhagem sonora do teatro, sabe com quem posso tratar isso?
- Sim, claro. Pode ser comigo.

Algo naquela voz a trazia uma certa lembrança. Mas resolveu ignorar.

- Ótimo, desculpa, como você se chama?
- Fernando.

E tudo veio em um flash violento, ela fez de imediato a ligação do teatro em que estava ligando com a pessoa do outro lado da linha, era ele. Fernando. Aquele homem a tempos atrás, brincou com muita maestria com os sentimentos dela, ela sentiu o sangue ferver, suas mãos suavam, seus olhos marejavam, sua voz teimava em falhar, mas ela precisava continuar seu trabalho.

- Senhor Fernando, poderia me dar algumas informações de que tipo de aparelhos vocês usam hoje?
- Sim, nós usamos o aparelho....

Ele falou por mais ou menos um minuto. Um minuto onde ela lembrava de cada nuance daquele homem, onde ela relembrava amargamente da voz dele quando a chamava para a cama, do olhar frio que ele a dava e que mesmo assim, ela acreditava conter todo o carinho e amor que precisava.

- Senhora? Está aí?
- Estou, desculpa Fernando. Me diz, vocês usam isso a quanto tempo?
- Há uns cinco anos, eu creio.
- Sei. - Há cinco anos eles terminaram.- E vocês estão satisfeitos com esses aparelhos? Tem alguma melhoria em mente?

Fernando continuava a falar com muita empolgação de todo o sistema, e ela massacrava seu coração com lembranças de uma época que pensava ter esquecido. Tola, isso estava mais vivo que toda a vida dela depois dos últimos cinco anos.

- Senhor Fernando, obrigada pelas informações. Você poderia me dizer seu sobrenome?
- Sim, é Cruz.

E por infinitas vezes elas imaginou ter esse sobrenome para ela.

- E qual teu cargo aí no teatro?
- Violinista.

É, ela sabia. Ela sabia muitas coisas sobre ele, aonde morava, de quais animais gostava, qual era a cor preferida, o que gostava de comer de madrugada. Ela sabia que ele era violinista, aquele violinista que seria o único na vida dela. Ela tentava com todo o seu esforço travar seus sentimentos para não vacilar na ligação. Certa vez quase deixou escapar um soluço do choro que a sufocava.

- Senhor Fernando, muito obrigada pelas informações, tenha um bom dia.
- Disponha. Foi bom falar com você, Vasquéz. 

E desligou. Ele sabia que era ela. Mas eles não poderiam mais estar juntos. Aquela infelicidade do destino aconteceu só para lembrá-los de um sentimento doloroso que estava enterrado. Agora ele estava vivo, e assim continuaria pela eternidade, pelos textos, pelas músicas. Ela naquele cubículo respirou profundamente e limpou as lágrimas, reabriu a planilha e marcou aquele teatro com um fundo vermelho. Não estava no perfil. 

Passou para a próxima ligação.