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quinta-feira, 2 de julho de 2015

Época

(  Reflections- Wynton Marsalis: Sugestão para ouvir enquanto ler.)

Era mais uma noite quente em Salvador. O relógio finalmente zerado, dava início a um novo dia. Quando olhava o relógio zerar, para mim, significava mais uma chance de reviver lembranças esquecidas. Aquele horário havia se tornado mágico para minhas memórias.

Era mais uma noite quente de outono, quando envolvida pelo frio do ar condicionado, eu lembrei daquela noite do carnaval de 2015, na Chapada Diamantina. Estava tão nervosa com aquele encontro, que nem consigo me recordar da roupa que vestia, mas ainda é vivo na mente o primeiro vislumbre que tive dele. Naquela casa de pedra, onde a luz deixava as cores mais quentes fazendo contraste com o clima ameno, ele estava parado ao lado da mesa de madeira conversando com outras pessoas que na minha recordação são apenas vultos. Ele vestia um casaco marrom, lembrando um lenhador daqueles típicos americanos, o boné que sombreava o rosto o dava um ar de mistério em suas linhas duras de um passado doloroso. Havia um sorriso no meio daquela barba rala e grisalha, e um olhar que me arrebatou, quando este pousou os olhos em mim ao entrar na sala. Eu nunca consegui entender o que nossos olhares disseram, mas disseram. Nunca pude decifrar a energia que nos atraiu, mas fomos atraídos. Nunca poderei explicar o que aconteceu naquele primeiro contato antes das apresentações, mas algo aconteceu.

Confesso que foi decepcionante o seguir da noite, pois não houveram demonstrações de interesse. Apesar de estar sentado à minha frente no restaurante, ele continuava distante. Inacessível. Não é preciso ser muito conhecedor da minha pessoa para saber que toda aquela reclusão me atiçava muito mais, e minha curiosidade de descobrir aquele homem era muito mais que a minha fome no momento. Outras pessoas falavam, interagiam, mas elas eram vultos, e meus ouvidos eram atentos a qualquer pronunciar da voz rasgada dele. E eu esperava. Esperava ser surpreendida por aquele timbre que me causava pequenos arrepios. O quão adolescente voltei a ser, por soltar suspiros escondidos quando imaginava como deveria ser o toque de suas mãos ásperas em minha pele fresca e macia. Ou de como seria o roçar da barba no meu pescoço, enquanto ele sentia o cheiro dos meus formosos vinte e um anos. O quão adolescentes fomos ao desvias os olhares que queriam ser encarados e encorajados.

Mas ainda assim, a esperança em mim foi-se. Havia algo que eu não entendia entre as outras duas mulheres que o cercavam, mas que de alguma forma me disse que ele não seria meu. Fomos então andando até a casa onde eu estava hospedada, lá havia muita música que saia da vitrola, muitas pessoas no jardim, fumando e rindo na noite fria de Igatu. Eu estava pronta para me despedir daquele homem que exalava uma presença forte e viril sobre mim, quando ele me olhou, provocando novamente uma ligação inexplicável em nossos olhares, e me chamou para fumar com ele na casa em que estava. Tão envolvida fiquei naquela figura e em meus pensamentos juvenis, que aceitei sem nem cogitar um segundo pensamento. E fui. Chegando lá, novamente só havia vultos e murmúrios. Meu foco estava totalmente nele, que estava escondido em fumaça, a luz branca da porta da cozinha, e as sombras que a união dos dois elementos anteriores causavam. Da conversa eu não lembro muito, mas relembro de estarmos sentados com mais duas pessoas em um banco de madeira no jardim, eu alternava entre o fumo e a doce Amarula. Chapados, ouvimos a sinfonia de três grilos.  Os vultos faziam outras coisas, mas ele estava parado, imerso em seus tão profundos pensamentos que eu nunca imaginei um dia ser capaz de mergulhar tão a fundo neles. Nessa altura eu estava tão inebriada das drogas lícitas e ilícitas que já não me lembrava mais onde estava, que horas eram, ou que eu precisava voltar pra casa. Apenas ele em minha visão embaçada de fumaça, o leve calor produzido das nossas pernas que se encostavam, e o meu coração que batia tão forte que quase pensei que todos o escutavam. Mas um clique me despertou para a realidade, como o badalar dos sinos avisou a Cinderela do fim do seu feitiço, e eu disse que precisava ir. Ele me levaria em casa, ofereceu. Não recusei.


Pelo caminho de paralelepípedos incertos, o frio cada vez mais se fazia presente. As pernas sutilmente se trocavam, e todo esforço era necessário para não tropeçar. Enfim, caminhando sozinhos, na pequena cidade de Igatu, nossos risos brotavam. Pequenas conversas surgiam. O corpo esquentava. Naquela rua de iluminação um pouco fraca e de casas antigas e coloridas, paramos na porta verde musgo da minha casa. Os sorrisos cada vez mais abertos, davam espaço para que os corpos se aproximassem mais. Não houveram muitas palavras, apenas o inevitável. O quão adolescentes fomos para enfim nos beijarmos apenas no fim do encontro, um beijo que criou um encaixe perfeito dos lábios, criando mil delírios em minha mente e em meu corpo ao sentir o toque firme das mãos dele.